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Kid A é o verdadeiro “ok, computer”



Quando o Radiohead lançou Ok Computer, em 1997, recheado de canções pungentes e melodias marcantes, estava cinicamente sinalizando para a certeza que causaria as maiores incertezas contemporâneas: o mundo real estava sendo inapelavelmente substituído pelo virtual. Com o premonitório, caótico e apocalíptico Kid A, que acaba de completar 25 anos de vida, Thom Yorke “e seus blue caps” radicalizaram no som e na estética para oferecer uma obra-prima que, a cada progressão digital, se comprova mais (assustadoramente) assertiva e, esta sim, explica o mundo em que “os computadores venceram”.
Kid A é um disco de negação, em que a então maior banda do planeta rock renega... o rock, que àquela altura já tinha cumprido com louvor suas funções primordiais: emular sexo na pista de dança dos anos 50, protestar contra a sociedade conservadora dos anos 60, se rebelar contra a letargia dos próprios roqueiros, chapados de fama e riqueza na década de 70 – gerando a partir do punk uma profusão de sub-estilos que desembocaram nos 80 –, e ganhar sobrevida quando o Nirvana mixou Led Zeppelin com Sex Pistols em Nevermind e concedeu para a geração de jovens formados pela MTV um anti-herói pra chamar de seu – depois disso ainda houve um suspiro indie nos anos 00, com Strokes e cia., que cumpriu seu papel, mas não foi relevevante o suficiente para abalar com as estruturas da música pop.
Kid A está radicalmente inserido em seu tempo e espaço, a virada de milênio de um mundo binário – e não por acaso foi ouvido na internet antes de ganhar formato físico, algo tão inovador para a época quanto o lançamento de In the Wee Small Hours, de Frank Sinatra, em 1955, o LP de 12 polegadas que popularizou o conceito de álbum.
Kid A surgiu indecifrável, com vocais robóticos e atmosferas instigantes que refletem a angústia humana diante dos desafios dos anos vindouros, do tédio terminal à compulsão pelas informações instantâneas à ameaçadora escalada da inteligência artificial. Hoje, na medida em que é cada vez mais difícil entendermos o mundo, é bem mais fácil de o disco ser compreendido.
O quarto álbum da banda inglesa veio depois de um período de depressão de Thom Yorke, sucedido por um bloqueio criativo que lhe concedeu uma epifania. Junto com o baixista Colin Greenwood, ele estava entusiasmado com o potencial eletrônico, e negociou com os guitarristas Johnny Greenwood e Ed O'Brien, e o baterista Phil Selway, uma maneira de criarem, cada um no seu quadrado, uma obra de state-of-the-art. O produtor Nigel Godrich relutou, mas topou: Thom e Colin foram gravar num estúdio, Johnny, Ed e Phil em outro. 
Na medida em que evoluiu, o conceito ganhou coesão e o acréscimo de influências atemporais liquidificadas em ambiências marcantes, entre o lirismo e o desespero, com letras fragmentadas envoltas pelo atonalismo erudito de Krzysztof Penderecki, o jazz nervoso de Charles Mingus, o relax ambient de Brian Eno, a radicalidade eletrônica de Aphex Twin e Autechre, a música concreta de Paul Lansky, o apelo retrô de teclados como o ondes Martenot, e as seções rítmicas up-to-date do hip hop de DJ Krush e Blackalicious.
Do som grave de teclado de "Everything In Its Right Place" ao sinistro tributo aos filmes da Disney em "Motion Picture Soundrack", a beleza estética flui entre ranhuras. Uma canção melancólica conduzida por violões como "How to Disappear Completely" vem emoldurada por um som assustador e grandiloquente de orquestra. Uma faixa funkeada como "The National Anthem" recebe sopros de metais frenéticos e ganha ares perturbadores. 
Kid A é o século 21 em forma de música.

(Marcélo Ferla, outubro de 2025)


Música preta brasileira, safra '25




A Rádio Agulha é um lugar de música e sua marca é a nova música pop brasileira. A proposta vem da herança dos sete anos do Agulha, uma das mais importantes casas de midstream do país, e da constatação óbvia e recorrrente de que se conhece de menos um som que é bom demais – aí entra o fim da indústria fonográfica, o sumiço das rádios de música tradicionais e tudo o que se discute desde que o streaming tomou conta da cena.
Tocar a nova música pop brasileira é mais fácil do que acompanhar as ofertas quase diárias de bons lançamentos do gênero. E aqui me permito focar num fenômeno de 2025: os discos de música preta brasileira produzidos por artistas originalmente ligados ao hip hop, mas que hoje navegam por cenários muito mais amplos. A produção é rica e numerosa, o encontro com a velha MPB vem forte, as colaborações entre artistas são evidências contemporâneas, em tempos em que a co-criação é marca.
Vou destacar as três obras que mais gostei até agora – mas do jeito que esta banda toca, semana que vem esta lista provavelmente seria diferente...
Em Fragmentado, dividido em blocos por tema, o carioca Xamã (foto) mixa hip hop, ancestralidade indígena, cinema, rock, família e MPB, e chama pra seu álbum mais ousado Milton Nascimento, Adriana Calcanhotto, Criolo, Black Alien, Liniker, BK e Duquesa, entre outros.
Em Caro Vapor II – Qual a Forma de Pagamento?, o brasiliense criado em Fortaleza Don L mixa latinidades, baião, bossa nova, samba, funk e R&B, com participação de artistas como Anelis Assumpção, Luiza De Alexandre, MC Drika, Terra Preta e uma série de citações da velha MBP, que incluem de Dorival Caymmi a (de novo) Milton Nascimento: “Para Kendrick e Kayne” é a versão 2025 da setentona “Para Lennon & McCartney” – um trecho da gravação original abre a faixa.
Em Diamantes, Lágrimas e Rostos para Esquecer, o carioca BK mixa samples da MPB com beats criados por bambas como Deekapz, JXNV$ e Nansy Silvvz, tem feats certeiros de Melly, Fat Family e Luedji Luna, entre outros, pra falar de amor e da vida na comunidade – ele nasceu na Cidade de Deus. É o disco mais focado no rap dos três citados. Pra variar, tem Milton Nascimento (com o sampler de “Certas Canções” em “Ninguém Vai Tirar Minha Paz”), mas desta vez os destaques vão pra Djavan, com sua “Esquinas” sampleada na abertura do rap “Só eu Sei” (ou seja, o título da faixa remete aos versos da música sampleada), e Evinha, que teve trechos de duas de suas músicas sampleadas: “Só Quero” faz parte de “Só Quero Ver”; “Esperar pra Ver”, que retornou como hit este ano, está em “Caco de Vidro”. Um aparte sobre Evinha: ex-integrante do Trio Esperança, nos anos 60, e que depois teve uma carreira consolidada no exterior, ela voltou à cena depois que o DJ Alok e o produtor Watzgood recriaram “Esperar pra Ver” numa versão house bem comercial, mas que serviu para as novas gerações conhecerem sua voz aguda que tanto encantou seus...avós.
E pra ouvir tudo isso e muito mais? www.radioagulha.com.br, claro, que desde de 20 de setembro, quando completou quatro meses, passou a operar 24 horas por dia!

(Marcélo Ferla / setembro 2025)



Top 5? Kraftwerk + 4




Listas estão entre as delicinhas da cultura pop. Nick Hornby sacou isso e escreveu um dos livros top 5 dos anos 1990, Alta Fidelidade, em que elege dos cinco maiores desamores de sua vida aos cinco melhores álbuns de artistas escandinavos que começam com a letra Y (ok, não tem exatamente esta lista, e os desamores são do personagem do livro, mas vc entendeu).
O rock domina as listas de maiores artistas do século 20 com recorrência, solo ou de bandas. O bom do rock é que desperta paixões e elas se bastam, o rock é exclusivista. O ruim do rock foi que, quando ainda importava, ele foi exclusivista demais: “ou você gosta de rock ou de Madonna” (ok, o rock ainda tem alguma importância, mais até do que a Madonna atualmente).
Por décadas, o rock alimentou o jornalismo musical com banquetes fartos, e de contrapartida esteve sempre no topo. Sendo recorrente, o rock domina as listas de maiores bandas do século 20. Mas e o Kraftwerk? Não me refiro àquele entre 1970 e 1973, com Florian Schneider e Ralf Hutter, que gravou quatro bons discos experimentais de krautrock, mas o que lançou Autobahn, em 1974, e depois Radio-Activity (1975), Trans Europe Express (1977), Man Machine (1978), e daí pra frente, uma coleção de pérolas do minimalismo eletrônico, do retrô-futurismo e da melancolia sintetizada em que o quarteto imprimiu seu conceito estético e musical da mão humana que pilota computadores para refletir o espírito do tempo – quarteto porque Karl Bartos e Wolfgang Flur entraram a partir da turnê de Autobahn.
Cinquenta anos depois, o que você ouve de música pop tem um quê de Kraftwerk (ou uns quantos), como se os computadores tivessem invadido o cotidiano do planeta (ok, eles estão entre nós), de Charlie XCX ao funk brasileiro, de Jamie XX ao DJ mais famoso da África, e desde Bowie, que tem até faixa em homenagem a uns dos integrantes, “V-2 Schneider”, ao Joy Division e ao New Order, desde Afrika Bambaataa, que sampleou ”Trans Europe Express” pra fazer a seminal “Planet Rock” e colar hip hop com eletrônica, ao disco “eletrônico” do heroi folk Neil Young, Computer Age.
Eu desconfio de qualquer top 5 dos grupos mais importantes da história da música pop em que não figure o grupo alemão de Düsseldorf. Beatles e Rolling Stones também estão lá, claro. Tem vaga pra outros dois – The Who?, Led Zeppelin?, The Clash?.
Lista são uma delicinha, mas não é tarefa fácil. A sua tem lugar para os alemães de Düsseldorf?

(Marcélo Ferla / junho 2025)



Sucesso do Paralamas antecipou anos 90



O disco ao vivo Paralamas do Sucesso: Vamo Batê Lata, está completando 30 anos, e mais do que celebrar a compilação de grandes hits acompanhada por um EP de quatro faixas inéditas em estúdio, inclusive “Uma Brasileira”, com Carlinhos Brown e Djavan, e a política “Luís Inácio (300 Picaretas)”, cabe estabelecer a importância do trio oitentista para a década seguinte.
Depois de emular artistas gringos no começo da carreira, como a maior parte das bandas de rock nacionais dos 80 – Legião era Smiths, Titãs o Gang of Four, Paralamas o Police... –, Herbert, Bi e Barone diminuíram as influências gringas e anteciparam os anos 90 com Selvagem?, de 1986, incorporando mais brasilidade no seu som, como em “Alagados” – e tem a regravação de “Você”, de Tim Maia, sintomática e oportuna: o Síndico andava meio esquecido, acredite.
Como quase todos os companheiros de geração em tempos de Collor de Mello, confisco de poupança e ascenção do sertanejo, o trio terminou a década em baixa no Brasil. Sorte que os argentinos descobriram e adotaram o Paralamas no começo dos 90. Aliás, los hermanos Fito Paez e Charly Garcia estão em Vamo Batê Lata, que vendeu mais de 1 milhão de cópias: Fito participa do show, com “Trac Trac”, Charly na gravação de estúdio da inédita “Sabe Amar.”
O disco ao vivo de 1995 foi lançado no mesmo período em que bandas como Skank, Raimundos e Chico Science & Nação Zumbi pediam passagem intensificando a receita de Selvagem? . Maduro, o Paralamas atravessou a década lado a lado com a garotada que influenciou, fazendo rock com sabor brasileiro e batendo lata para multidões país afora. 

(Marcélo Ferla / maio 2025)